O que Cobra Kai me ensinou sobre personagens tridimensionais

Eu e o meu namorado estamos sempre à procura de séries novas  para podermos ver juntos. Ele não gosta das séries dramáticas e lamechas e eu prefiro evitar de todo séries que se passem no espaço ou com demasiada ficção científica. Pelo que, visto que a maioria das séries já foram vistas e o vírus parou a produção de outras quantas, estava-se a tornar cada vez mais difícil.

Isto é, até descobrirmos que podíamos ver 3 temporadas inteiras de Cobra Kai, o remake do Karaté Kid.

Ora, eu adorei os filmes do Karaté Kid. E é bem possível que esses filmes, juntamente com os Power Rangers, tenham tido uma certa influência na minha decisão de me mudar para a China durante um ano para estudar Kung-Fu. Pelo que comecei a série com um certo nível de caução. Mas para minha grande surpresa: adorei.

Porquê? Há tanta coisa má com aquela série – algo que mencionarei mais tarde se quiseres saber a minha opinião. Mas ainda assim conseguimos acabar as três temporadas em pouco mais de uma semana (os episódios são pequenos, o que ajuda).

Mas o que me colou ao ecrã para além das coreografias dramáticas das lutas e o sentido de humor do Johnny Lawrence?

Resposta: as personagens tridimensionais.

No filme original, Johnny Lawrence não passava de um bully mau que servia para ser odiado. Ficámos contente quando Daniel ficou com a namorada dele (ou ex) e gostámos ainda mais quando lhe deu cabo do coiro.

Mas a série Cobra Kai leva a peito a lição que a maior parte de nós escritores ainda está a tentar aprender. Eu inclusiva. Aliás, foi graças a esta missão que descobri a verdadeira razão pela qual esta série mexeu tanto comigo e com o meu namorado, que um mês depois ainda falamos um com outro utilizando referências da série.

Todos nós sabemos que toda a gente é o  o herói da sua própria história. Mas por vezes nós, escritores, ficamos tão focados nos nossos heróis que nos esquecemos que os outros personagens têm de ter uma razão para estar envolvidos com o personagem principal. Essa razão deve estar diretamente ligada ao personagem principal, sim, mas o personagem secundário não está consciente disso, para o personagem secundário ele é o herói da sua história.

Vamos por partes…

Cobra Kai - personagens

Johnny Lawrence

Ao contrário do Karaté Kid, onde Daniel era o protagonista, Johnny torna-se o alfa-protagonista de Cobra Kai. (Alfa protagonista é quando há mais do que um personagem principal (Daniel LaRusso), mas há um que ainda é mais importante que o outro (Johnny Lawrence)).

Com esta perspetiva descobrimos que Johnny Lawrence não é um vilão assim tão mau, mas é de facto o herói da sua história. No Karaté Kid ele não passava de um adolescente atlético com uma má situação familiar e cujo único conforto era a sua namorada, Ali. Até que ele faz asneira e antes de ter oportunidade para a recuperar (well, because he was kind of a dick teenager), chega o miúdo novo cheio de confiança e rouba-lhe a miúda. Desencadeando uma série de eventos que lhe destruíram a vida… ou assim pensa Johnny.

Mas o Johnny não é só uma coisa ou outra. Ele não é o vilão. Ou o herói. Ele é os dois. E para além de ser os dois, ele começa-se a aperceber que há momentos em que não é nenhum. E é isso que o torna um personagem tridimensional.

O que é um personagem tridimensional?

Um personagem tridimensional é geralmente descrito como um personagem que tem uma dimensão física, psicológica e social.

Mas com esta definição, torna-se muito fácil de criar clichés: A heroína que é tão boazinha cujo defeito é ser boazinha demais. E como é tão boazinha, a nível social toda a gente gosta dela, mas não só… É super linda fisicamente e por isso todos os rapazes sentem-se atraídos por ela, mas ela não sabe que é linda porque é tão boazinha (se descobrirem de que livro estou a falar, dou-vos uma medalha 😊).

Eu prefiro ver personagens tridimensionais como personagens com traços díspares. Ninguém é uma coisa ou a outra (unidimensional), nem todos somos preto no branco ou branco no preto (bidimensional). Existem alturas na vida quando somos as duas cores, dependendo da situação, mas também temos as nossas áreas cinzentas (tridimensional).

 

Johnny Lawrence é um clássico  idiota com um trabalho mediano que bebe cerveja barata, destrói bares, e come comida de plástico. Conduz carros clássicos e ouve a “verdadeira” música do seu tempo. Se fosse só isso Johnny seria um personagem previsível. Mas Johnny é também altamente disciplinado no que toca a artes marciais e extremamente empático quando acolhe Miguel, um miúdo que sofre de bullying, como seu discípulo. Johnny também é extremamente confiante e com sentido de humor, mas tudo isso começa a oscilar quando é obrigado a refletir sobre os momentos onde falhou: no torneio em que Daniel venceu; na vida em geral, onde Daniel tem mais sucesso; e como pai, área onde Daniel parece fazer um trabalho melhor que ele.

Os meus personagens preferidos são sempre os personagens bons com um mas… ou os personagens maus com um mas… E é por causa disso que Johnny pode ser um completo idiota, mas mesmo assim continuamos a torcer por ele. Conseguimos sentir empatia, porque tal como disse, não somos só uma coisa, ou só a outra.

Os outros personagens

Outra coisa que me apercebi que pode muito bem explicar o porquê desta série ser tão viciante são os outros personagens secundários. Algo que ando a aprender quanto mais leio o fabuloso livro de Lisa Cron, Story Genius.

No seu livro, Lisa Cron, diz que apesar dos personagens secundários estarem na história para servir o personagem principal, na sua história, eles são o protagonista e têm a sua razão (agenda) de ser para estar na história.

Daniel LaRusso não está na história para fazer com que Johnny se sinta inferior. Daniel está na história porque acredita que há uma forma melhor de ensinar artes marciais. A sua agenda é criar um dojo que ensina artes marciais com princípios, mas a sua agenda interfere com a de Johnny.

Miguel não entra na história para que Johnny se sinta o herói. O Miguel entra na história porque tem problemas na escola, onde sofre de bullying. Ele vê os movimentos super badass de Johnny quando ele o defende, e só quer que alguém o ensine a fazer o mesmo. A sua agenda é aprender a defender-se sozinho, mas a sua agenda interfere com a de Johnny quando este só quer viver uma vida pacata, mas também quer fazer algo que adora.

Samantha não entra na história só para criar mais conflito (apesar de haver mil um problemas com esta personagem, numa tentativa de criar complexidade em detrimento da sua empatia, mas falarei disso noutra altura). Samantha entra na história porque passou a vida a tentar evitar conflito na expectativa de ser mais popular e vê que isso não a levou a lado nenhum, uma vez que os seus amigos viraram-se contra ela na mesma. A sua agenda de tentar integrar-se no seu grupo de amigos, no início, interfere com a de Johnny quando as amigas lhe destroem o carro. E a sua agenda de tornar-se mais fiel a si própria – quando vê que o primeiro objetivo não resultou – inclui retomar a atividade que adorava quando tinha seis ou sete anos. Esta agenda interfere com a agenda de Johnny porque Samantha junta-se ao dojo do pai, o arquinimigo de Johnny, mas também namora o seu aprendiz, Miguel.

Robbie é para mim, uma das personagens mais clichés da série, mas também ele tem a sua própria agenda: vingar-se do abandono do pai, Johnny, quando na verdade a única coisa que quer é alguém que o aceite. Warts and all.

Mas ao analisarmos o protagonismo de cada um dos personagens apercebemos-nos que todos eles têm a sua razão de ser na história. E é isso que faz com que a série seja tão convincente (se tentarmos ignorar os pequenos detalhes onde falha).

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