O que Reprisal e Kill Bill me ensinaram sobre enredo vs. história

Acabei de ver a série da Hulu, Reprisal, e fiquei tão irritada!!! Foi suficientemente interessante para me manter a ver os 10 episódios. Mas não consegui parar de me irritar com a forma como nunca nada foi explicado!

“O que queres dizer com não foi nada explicado?” perguntou o meu namorado.

“Porquê?” respondi eu. “Porque fizeram eles o que fizeram à Katherine Harlow? Porque exactamente foi ela à procura de vingança depois destes anos todos?”

“Por causa do que eles fizeram. E eles fizeram o que fizeram porque tinham medo que ela contasse. Não precisa de ter uma razão maior do que essa,” respondeu ele.

Só que tem. Ele estava a falar com uma escritora. Nada me deixa mais insatisfeita do que chegar ao fim de uma história e perguntar -me: Qual era então o objectivo de tudo isto?

Então, se tens estado a pensar qual é a diferença entre História e Enredo, essa é a sua diferença. História explica o objectivo do enredo.

Story vs plot thumbnail with Reprisal and Kill Bill posters in the background

ENREDO

Um monte de coisas que acontecem por razões externas. O enredo diz o que está a acontecer. Os acontecimentos do livro.

  • Em Reprisal, Katherine chega e vê que o seu irmão matou um bando de homens e grita que não precisava de o ter feito.
  • Agora eles sabem e há uma grande hipótese de ela contar. Então eles (incluindo o seu próprio marido), acorrentam-na e arrastam-na pela estrada na parte de trás de uma carrinha. Deixam-na praticamente morta.
  • Ela regressa anos mais tarde e começa a vingar-se.
  • Há uma série de acontecimentos e coisas que acontecem. As pessoas matam-se umas às outras, têm muitas lutas, há muito sangue e música dramática.

 

PORQUÊ? QUEM SABE DIZER?!

Porque é que o irmão matou aqueles homens? Penso que ele queria guerra, não tenho a certeza. Por que queria ele guerra? Quem sabe dizer, quem se importa?

Porque é que o irmão a arrastou pela estrada com a carrinha? “Porque ela merecia mais do que uma espingarda na cabeça.” O que é que isso significa? Ela merecia pior porque era uma pessoa horrível? Não sabemos nada sobre a sua relação. Ela mereceu-o, porque uma espingarda era demasiado comum? Quem sabe dizer? Não sabemos nada sobre a sua relação.

Porque é que o marido concordou? “Porque o irmão encheu a sua cabeça com ideias de família e grandes coisas que íamos fazer”. O que são essas grandes coisas? Que ideias de família? A sua mulher não é a sua família? O que levou o marido a trair a sua mulher? Não sabemos nada sobre a sua relação.

Porque é que as outras personagens estão lá? Para que mais acontecimentos possam acontecer.

Não me interpretem mal, o enredo é extremamente importante para o história. Faz com que o personagem faça a história avançar. Não queres uma grande pilha de melancolia como Edward em Midnight Sun (desculpem-me amantes do Midnight Sun).

Mas nada me faz sentir mais enganada do que quando algo acontece e penso “Oh, estou a ver o que fizeste. Acabaste de escrever isso para servir o teu enredo!” Os leitores podem não pensar como escritores, mas lêem mais do que um livro. Eles sabem quando estão a ser enganados.

Quando há momentos como quando a mota não funciona durante meses, mas de repente precisamos mesmo dela. Então basta ver um cabo e prendê-lo, agora funciona? PLOT!

Mataste alguém e deixaste a sala cheia de sangue por todo o lado. Em vez de sair do motel, mudaste-te para o quarto ao lado. Ninguém vem fazer perguntas ou limpar o quarto? Porquê… PLOT!

Os leitores irão começar a virar os olhos e dizer “a sério?”.

 

HISTÓRIA

Só compreendi realmente a resposta a esta pergunta depois de ler Story Genius by Lisa Cron. Nas suas palavras:

“A história é sobre a luta interna, não uma luta externa. É sobre o que o protagonista tem de aprender, de ultrapassar, de lidar internamente para resolver o problema que  o enredo externo coloca”.

Em suma, é sobre a mensagem que pretende transmitir ao leitor. A razão. A razão pela qual as coisas acontecem na  história.

A Reprisal poderia ser uma boa série se explorasse as visões confusas de família que os gangues têm. Os ideais de lealdade e outras coisas que os mafiosos valorizam. Mas não fez nada do género.

Li um artigo em que um dos actores comparou o programa com o Kill Bill. Quer dizer, consigo vê-lo, mas… a sério? Pelo menos no Kill Bill eu sabia porquê!

  • Era bastante óbvio que a personagem não estava satisfeita com a sua vida como assassina. Ela queria assentar e ter uma família, especialmente desde que estava grávida. A sua luta interna era uma de amor, querendo construir uma família pacífica e carinhosa longe dos pesadelos que tinha vivido.
  • E BANG BANG. O Bill veio e tirou-lhe isso tudo. Porquê é que ele fez isso? Podes apostar que vais descobrir se vires o filme.
  • Porque é que ela quer vingança? Porque o Bill lhe tirou a oportunidade de realizar o seu maior desejo!
  • E aquele clímax épico no final do último filme? Quando obtivemos todas as respostas pelas quais estávamos desejosos saber? É simplesmente fantástico!

Então é isso que a história faz. Faz com que o cérebro do leitor fique BOOM quando finalmente nos satisfaz com as respostas. Matar o mau da fita é sempre espectacular, mas a GRANDE REVELAÇÃO? Não se compara.

 

Portanto, tens duas opções:

  1. Não explicar o que acontece na história e ter um monte de coisas a acontecer. Conseguirás alguns fãs mas muitos leitores desapontados com um fim anticlimático.
  2. Criar personagens com desejos complexos, e histórias dentro de histórias. Faz-nos dizer “Ah, então é por isso que isto acontece…”. E vê as pessoas apaixonarem-se pelos teus livros.

Compreendo que a Reprisal provavelmente estava a tentar puxar para uma segunda temporada (não é de admirar que não o tenham feito). Não se mata personagens antes de termos a oportunidade de compreender porque é que elas merecem morrer.

Agora, se me dão licença, vou ligar para Hollywood e dizer-lhes que sou escritora e que estou disponível. Posso definitivamente fazer um trabalho melhor a explicar porque é que a série não estava a funcionar.

Patricia Morais na Feira do Livro de Lisboa com o livro Cronicas de Shaolin

Patricia Morais é autora de «Crónicas de Shaolin», um livro que conta a sua experiência a estudar Kung-Fu na China, e descreve com honestidade as experiências que a levaram até lá, assim como os problemas de motivação que enfrentou para poder permanecer.

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